Autoria: Zizi Martins
Tribunal de exceção é um órgão jurisdicional extraordinário, criado para julgar fatos ou pessoas específicos fora das normas e procedimentos regulares do sistema judiciário, após a ocorrência do fato a ser julgado. Tais tribunais violam o princípio do juiz natural, que assegura que ninguém será julgado por autoridade que não tenha sido previamente competente, além de desrespeitarem garantias fundamentais, como a imparcialidade e a ampla defesa. A Constituição Federal brasileira expressamente proíbe a sua existência, dada a grave ameaça que representam ao Estado de Direito.
Ao longo dos séculos XX e XXI, tribunais de exceção surgiram em diversas partes do mundo sob regimes autoritários, consolidando-se como instrumentos de repressão política disfarçados de legalidade. Exemplos históricos notórios incluem o Volksgerichtshof da Alemanha nazista, o Tribunale Speciale per la Difesa dello Stato na Itália fascista, os processos de Moscou na União Soviética stalinista, tribunais populares em Cuba e China, e tribunais especiais contemporâneos na Venezuela.
Todos esses tribunais compartilham características fundamentais: julgamentos sumários e acelerados, composição política das instâncias julgadoras, fortes restrições à ampla defesa e ao contraditório, uso sistemático de provas controversas, muitas vezes obtidas sob pressão ou coação, e uso da formalidade processual para conferir fachada legal a um processo político.
No século XX, o Volksgerichtshof, ou Tribunal do Povo, na Alemanha nazista, foi um dos mais temidos tribunais de exceção. Fundado em 1934, ele julgava líderes e ativistas da resistência contra o regime de Hitler, operando sob um sistema judicial que dispensava regras básicas de justiça. Os julgamentos eram praticamente meros trâmites para a condenação, com frequentes sentenças de morte, enquanto a defesa era quase inexistente.
Na Itália, o Tribunale Speciale per la Difesa dello Stato, criado por Mussolini em 1926, teve papel central na perseguição aos opositores do fascismo e na repressão a movimentos sociais. Sua atuação foi marcada por julgamentos submissos ao Executivo, praticamente abolindo garantias judiciais e impondo penas severas sem a possibilidade real de defesa.
Nos processos de Moscou da União Soviética, levados a cabo entre 1936 e 1938, a eliminação de opositores políticos passou por julgamentos fabricados baseados em confissões extraídas sob tortura, condenações sumárias e ausência total de contraditório. Esses julgamentos, que serviram para consolidar o poder de Stalin, evidenciaram como a formalidade jurídica pode ser mero artifício em regimes totalitários.
Mais recentemente, na América Latina, regimes autoritários de Cuba e Venezuela implantaram tribunais populares ou especiais que suprimem direitos processuais e fortalecem o controle judicial por parte do Executivo. No caso venezuelano, juízes indicados politicamente julgam adversários com base em processos acelerados, uso seletivo de provas e cerceamento da defesa. Já na China, tribunais ligados ao Partido Comunista realizam julgamentos políticos para perseguir dissidentes, frequentemente violando normas internacionais de direitos humanos.
No cenário político-judiciário brasileiro, o julgamento da suposta trama golpista na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) contra Jair Bolsonaro e outros réus revela sinais alarmantes do mesmo padrão. A competência do julgamento, antes reservada ao Pleno da Corte, foi transferida às vésperas para a Primeira Turma, composta por cinco ministros, que inclui figuras com histórico declarado de antagonismo político com o réu. Essa concentração reduz o espaço para um amplo debate colegiado, essencial para processos dessa magnitude, e questiona o respeito ao princípio do juiz natural.
A exceção do foro privilegiado no STF para ex-presidentes, no caso de Bolsonaro, não representa proteção para ele. Pelo contrário, essa excepcionalidade foi criada para mantê-lo sob julgamento em uma instância marcada por concentração de poder e que limita garantias básicas. A alteração elimina a possibilidade do julgamento em instâncias inferiores, como previsto nas práticas anteriores, e suprime o direito do duplo grau de jurisdição para revisão, ferindo diretamente o princípio do juiz natural e abrindo espaço para questionamentos constitucionais e jurídicos quanto a existir um foro fabricado para julgar o ex-presidente.
O ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, tem assumido funções que são tradicionalmente reservadas a outros órgãos no processo penal, como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e até mesmo o advogado da acusação particular no caso da delação premiada de Mauro Cid. Moraes tem conduzido amplamente as investigações, supervisionado diligências e orientado a coleta e seleção de provas, além de decidir sobre a validade de atos processuais essenciais, concentrando poderes fora do padrão processual regular. Além disso, críticos apontam que Moraes exerce, na prática, a qualidade de vítima no processo, dada sua condição de pretenso alvo de tentativa de homicídio, o que levanta graves questionamentos sobre a imparcialidade exigida para um magistrado que atua como relator em caso com tamanha proximidade pessoal e institucional com o objeto da acusação.
O ministro Flávio Dino, além de ser uma voz crítica pública de Bolsonaro, admitiu em 2023 que o Ministério da Justiça, então sob sua responsabilidade, deixou parte das imagens de câmeras internas relacionadas aos ataques de 8 de janeiro serem alagadas, justificando posteriormente que a exclusão ocorreu por questões contratuais com a empresa responsável pelo armazenamento. A demora na entrega das imagens solicitadas pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) também contribuiu para o questionamento sobre transparência e disponibilização dos meios de prova essenciais para o esclarecimento dos próprio fatos que estão sob julgamento e que poderiam ser realmente esclarecidos se as imagens não tivesse sido sonegadas.
O ministro Cristiano Zanin, ex-advogado do ex-presidente Lula e atual presidente da Primeira Turma, tem atuado historicamente com processos judiciais contra Bolsonaro e manifestações públicas que o colocam em posição de antagonismo ao réu, o que, ademais, levanta dúvidas quanto à imparcialidade necessária para um julgamento justo e equilibrado.
Esta composição que já inicia majoritária para a condenação impõe um cenário no qual o julgamento parece altamente influenciado por posicionamentos políticos já estabelecidos, fragilizando a percepção de justiça imparcial e contraditório efetivo.
A defesa encontra diversas limitações no processo, como o indeferimento de testemunhas essenciais sem justificativas técnicas razoáveis, somado a prazos exíguos para analisar ineditamente vasto material probatório. A única delação premiada que fundamenta a acusação, pertencente ao ex-ajudante de ordens Mauro Cid, passou por diversas revisões e foi alvo de denúncia de coação, inclusive com demonstração de ameaça nas gravações feitas do interrogatório sob supervisão direta do ministro relator, o que põe em dúvida a lisura e a veracidade dessa peça central da acusação.
Um outro aspecto que chama atenção no julgamento da suposta trama golpista pela Primeira Turma do STF é a excepcional celeridade do processo. O tempo entre o recebimento formal da denúncia — ocorrido em 26 de março de 2025 — e o início do julgamento, em meados de setembro de 2025, é pouco superior a cinco meses. Essa rapidez é singular para um processo de alta complexidade e com múltiplos réus, considerando os trâmites normais do Supremo Tribunal Federal (STF), que geralmente levam anos para isto ocorrer.
Em comparação, processos criminais comuns com vários réus no sistema de justiça brasileiro costumam ter duração média entre denúncia e julgamento bastante superior, frequentemente variando de 2 a 5 anos, conforme estudos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e tribunais estaduais.
Assim, o processo de Bolsonaro tramita com uma velocidade comparável a casos simples que correm em juizados criminais(de pequenas causas), cujos réus são geralmente indivíduos isolados e fatos bem menos complexos, o que torna essa celeridade extremamente atípica, sugerindo um julgamento sumário incompatível com a complexidade do tema e volume probatório. Esse ritmo privilegiado fere a previsão do direito ao contraditório e ampla defesa, e suas consequências devem ser objeto de reflexões profundas.
A implantação e consolidação de tribunais de exceção, historicamente, têm precedido e acompanhado a instalação de regimes ditatoriais e autoritários, em que o poder judiciário deixa de ser guardião da lei e passa a ser instrumento de repressão política e controle social. Em tais contextos, as garantias processuais essenciais são suspensas para eliminar opositores, perpetuar o arbítrio e destruir as bases do Estado de Direito. A instalação desses tribunais abre caminho para a concentração extrema de poder, agressão das liberdades civis e enfraquecimento das instituições democráticas.
Ao observar essa dinâmica na atuação da Primeira Turma do STF, é inevitável concluir que o Brasil se encontra perante um momento crítico, em que a história ensina que retrocessos dessa natureza podem levar anos ou décadas até serem revertidos, com alto custo social, político e institucional. Portanto, a urgente revisão e anulação desse julgamento, ou a concessão de anistia, de competência exclusiva do Congresso, são necessárias para interromper essa marcha autoritária e não comprometer definitivamente a democracia no país.
*Zizi Martins é ativista da liberdade, presidente do Instituto Solidez, membro fundadora e diretora da Lexum, vice-presidente da ANED. Advogada especialista e mestre em Direito Público, Doutora em Educação e Pós-Doutora em Política, Comportamento e Mídia